domingo, dezembro 19, 2010

Leituras

"Um homem deve ler de tudo, um pouco ou o que puder, não se lhe exija mais do que tanto, vista a curteza das vidas e a prolixidade do mundo. Começará por aqueles títulos que a ninguém deveriam escapar, os livros de estudo, assim vulgarmente chamados, como se todos o não fossem, e esse catálogo será variável consoante a fonte do conhecimento aonde se vai beber e a autoridade que lhe vigia o caudal, neste caso de Ricardo Reis, aluno que foi de jesuítas, podemos fazer uma ideia aproximada, mesmo sendo os nossos mestres tão diferentes, os de ontem e os de hoje. Depois virão as inclinações da mocidade, os autores de cabeceira, os apaixonamentos temporários, o Werther para o suicídio ou para fugir dele, as graves leituras da adultidade, chegando a uma certa altura da vida já todos, mais ou menos, lemos as mesmas coisas, embora o primeiro ponto de partida nunca venha a perder a sua influência, com aquela importantíssima e geral vantagem que têm os vivos, vivos por enquanto, de poderem ler o que outros, por antes de tempos mortos, não chegaram a conhecer. Para dar um só exemplo, aí temos o Alberto Caeiro, coitado, que, tendo morrido em mil novecentos e quinze, não leu o Nome da Guerra, Deus saberá a falta que lhe fez, e a Fernando Pessoa, e a Ricardo Reis, que também já não será deste mundo quando o Almada Negreiros publicar a sua história. Por um pouco veríamos aqui repetida a graciosa aventura do senhor de La Palice, o tal que um quarto de hora antes de morrer ainda estava vivo, isto diriam os humoristas expeditos, que nunca pararam um minuto para pensar na tristeza que é já não estar vivo um quarto de hora depois."

Excerto de "O ano da morte de Ricardo Reis", José Saramago.

3 comentários:

  1. Muito bom esse texto.
    Concordo demais com a frase inicial, realmente devemos ler de tudo.
    Beijo e uma ótima semana.

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  2. Pois... Continuo a achar que não é fácil ler Saramago. Entendo? Sim, mas quantas vezes tive de reler? N!... Interessante, porém, ver que, afinal, a palavra adultidade já está instituída! É que, há tempos, quando a utilizei (acho que até foi aqui pela blogosfera), foi aceite, mais ou menos, como outra invenção minha...

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  3. Luciana, eu tenho algumas dúvidas se devemos mesmo ler tudo. Quer dizer devemos ter uma opinião formada, se calhar isso quer dizer que, antes de comentar, devemos conhecer. Eu já estava a fazer o contrário ...

    Lélé, por acaso questionei-me sobre a palavra "Adultidade". Fui ver ao dicionário e não consta lá. Mas gosto muito do estilo de escrita de Saramago. Reconheço que é um autor que tem de ser lido por inteiro, não posso estar a fazer mais nada além de ler, ver tv, ouvir música, tenho de estar concentrada na leitura.

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