domingo, fevereiro 24, 2013

Milena - I

"Ao homem com "qualidades eminentes", Milena opõe, neste texto, o homem verdadeiramente bom, o que significa , para si, Franz Kafka. Escreve:
'Penso que o melhor homem que jamais conheci foi um estrangeiro que encontrei muitas vezes em sociedade. (...) Ninguém sabia grande coisa a seu respeito, e as pessoas não o consideravam uma personalidade extraordinária. Um dia, alguém lhe levantou uma acusação e ele não se defendeu. Tinha um rosto tão honesto, tão viril ... A acusação que lhe faziam era grave: eu não quis acreditar. Fazia-me um mal terrivel que este homem de rosto franco, olhos tranquilos e olhar tão directo, tivesse podido cometer qualquer acto tão feio. Decidi, pois, indagar sobre o que verdadeiramente se passara. Descobri, então, que ele não se defendera porque isso o obrigava a revelar uma acção infinitamente bela e nobre que praticara e da qual, outro que fosse, não deixaria de se vangloriar. (...) Dei-me conta que de que ele era o ser mais notável que já encontrara e, em toda a minha vida, nada me comoveu tanto como as pequenas incursões que me foi permitido fazer ao seu coração. Era de uma nobreza infinita, mas escondia-se, como se tivesse vergonha, creio, de ser melhor do que os outros. Era incapaz de fazer o que quer que fosse que revelasse como ele era verdadeiramente; o que ele fazia de belo, fazia-o silenciosa, tímida, receosa e secretamente, às escondidas. (...) Na altura da sua morte li nu, dos seus diários a descrição de uma cena que remonta à sua juventude - um dia a sua mãe dera-lhe uma moeda de vinte hellers (...) Saiu para comprar qualquer coisa e encontrou uma mendiga com um ar tão pobre que ficou assombrado; imediatamente sentiu um forte desejo de lhe oferecer a sua moeda de vinte hellars. Mas, nessa época, uma moeda de vinte hellers representava uma pequena fortuna, quer para uma mendiga, quer um rapazinho. Receoso dos louvores e dos agradecimentos com que a mendiga o submergiria, temeroso de assim chamar a atenção, decidiu, pois, trocar a moeda por dez kreuzers. Depois, deu um kreuzer à mendiga, deu a volta ao quarteirão, regressou pelo outro lado, ofereceu-lhe um segundo kreuzer, e assim sucessivamente, dez vezes, dando-lhe as suas dez moedas, não guardando sequer uma única para si. Depois, desatou a soluçar, totalmente arrasado pela tensão mental a que esta acção o obrigara".

Excerto de "Milena" de Margarete Buber-Neumann

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